De Bunin para Tolstói: a carta nunca enviada
Texto e tradução de Robson Ortlibas
Conforme prometido, esta é a carta de Ivan Bunin a Liev Tolstói. Não é a última carta escrita por ele, mas a penúltima delas; é uma carta a qual Bunin nunca enviou para Tolstói, segundo os arquivos do Museu Estatal L. N. Tolstói.
Será que sentiu vergonha após escrevê-la? Talvez tenha esquecido de enviá-la, ou foi apenas uma forma de desabafo e decidiu não a enviar?
O teor da carta é quase que uma confissão de Bunin. Ele expõe suas incertezas em relação à vida, no âmbito espiritual, profissional e existencial. Esta carta demonstra claramente o pensamento de Ivan Bunin ao longo de toda sua vida, ainda que, para muitos, tenha demonstrado ser uma pessoa fria, amarga e até odiosa. Foi escrita durante o período em que foi abandonado pelo seu primeiro amor, Várvara Páschenko, e iniciava sua longa carreira como escritor.
Além disso, é um documento importantíssimo, demonstrando que até mesmo os grandes nomes da literatura têm dúvidas a respeito do seu trabalho e da sua própria importância na literatura.
Poltava, noite de 21 de março de 1896.
Amanhã partirei para a província de Orlov, para a aldeia, e agora estava guardando meus pertences na cestinha de viagem e, como sempre antes da partida, ao mudar de lugar, ao guardar meus papéis, livros e cartas diversas, que levo comigo, e relendo involuntariamente nestes momentos, aquele sentimento que me atormenta com muita, muita frequência, intensifica-se, e precisei lhe escrever, porque definitivamente não tenho ninguém mais para dizer isso, é insuportavelmente difícil para mim! Um dia, o senhor demonstrou preocupação comigo. Isso foi há muito tempo, e desde então passei por muita coisa, mas parece que não cheguei à conclusão alguma. Mas minha vida também se organizou de uma forma que não está dando em nada. Para começar, agora sou um completo vagabundo: desde que minha esposa partiu[1], não paro em lugar algum por mais de dois meses. E quando isso vai acabar, e onde ficarei e por que, não sei. O importante é, para quê? Talvez eu seja um grande egoísta, mas, na verdade, muitas vezes me convenço de que seria bom me livrar deste fardo. Sobretudo, em minha vida tudo é surpreendentemente fragmentário. O conhecimento é o mais fragmentário e, às vezes, isso me atormenta a ponto de ficar psicótico: são tantas coisas, tantas coisas para aprender e, em vez disso, são coletados pedaços patéticos. Então se quer aprender algo profundamente, desde bem o início, desde seu âmago! No entanto, talvez seja um raciocínio infantil. Então, nos relacionamentos com as pessoas: outra vez afinidades fragmentárias, estilhaçadas, quase uma falsificação de amizades, de momentos de amor, etc. E já não espero me dar bem com ninguém. E o passado não deve ser esquecido, e no futuro, provavelmente, não há ninguém com quem seria bom: tudo será outra vez fragmentado, incompleto, mas você quer uma boa amizade, juventude, compreensão de tudo, dias claros e tranquilos... E muitas vezes pensa: mas que direito você tem a isso? E com toda essa insignificância, com essa sede de vida e os tormentos dela, ainda saber que o fim está logo aí: afinal, na melhor das hipóteses, posso viver mais 25 anos, e 10 deles serão dormindo. Conclusão engraçada e maldosa! Muitas vezes me convenci de que a morte não existe, mas não, deve existir, existe, pelo menos não serei o que tanto quero ser. E não passará nem 100 anos para que não reste um único ser vivo na Terra que queira viver e viva tal como eu – nem um único cachorro, nem um único animalzinho e nem uma única pessoa – será tudo novo! Mas em que acredito? E não é que não reste nada de mim, como uma vela queimada, nem que eu vá vagar por algum lugar, durante séculos sem fim, para me alegrar ou me entristecer. Mas e Deus? O que posso ponderar, quando basta perguntar a mim mesmo: onde estou? Onde fica essa nossa pequena terra, mesmo o mundo inteiro com inúmeros mundos? Vamos supor que seja assim, ao menos em forma de bola, mas o que há em volta desta bola? Nada? O que é o nada, e onde esse nada termina, e o que, o que há lá, para além desse "nada", e quando tudo começou, o que havia antes do início – basta pensar nisso para não gaguejar sobre nenhuma conclusão! Mas também é possível, por fim, reconciliar-se com tudo, abaixar a cabeça com obediência e ir apenas ao encontro daquilo que atrai os bons desejos do coração, e confortar-se com isso, mas como é difícil fazê-lo – abaixar a cabeça em uma consciência triste, com lágrimas da sua impotência e passividade. Mas também neste caminho – ser eternamente incompreendido até mesmo por quem ama tão sinceramente quanto possível, como diz Amiel[2]!
A literatura me conforta com frequência, mas também a literatura – afinal, meu Deus, às vezes parece não haver estados de espírito mais bonitos, mais alegres ou mais tristes no mundo, e que todos estão nesse humor maravilhoso, mas não por muito tempo, pelo simples fato de que, de tudo o que venho lamentando ou refletindo com alegria, com o coração batendo com toda a minha juventude, e o que parecia ser a essência da minha alma e o trabalho da minha vida já há 10 anos –, de tudo isso resultaram várias histórias insignificantes, pequenas, que não expressam nada!...
É assim que vivo, e se a minha carta é infantil, fragmentária e não diz aquilo que queria dizer, quando me sentei para escrevê-la, então a minha vida também é como esta carta. Não se surpreenda com ela, caro Liev Nikoláievitch, e não pergunte para que foi escrita. Afinal, o senhor é uma daquelas pessoas cujas palavras elevam a alma e tornam as lágrimas até mesmo elevadas, e que, em um momento de dor, quer começar a chorar e beijar sua mão com ardor, como a do próprio pai!
Tenha saúde, caro Liev Nikoláievitch, e não se esqueça de quem o ama profundamente.
Ivan Bunin.
O que Tolstói teria respondido a Bunin, se tivesse recebido esta carta do jovem escritor? Será que ele a responderia?
Resta-nos apenas imaginar.
Caso queira saber mais sobre a obra de Ivan Bunin, sua vida e a relação dele com Liev Tolstói e com os demais autores de sua época, leia “Rosa de Jericó e outros contos”, de Ivan Bunin, com tradução direta do russo por Robson Ortlibas, lançado pela Tacet Books. Está à venda na Amazon de todo o mundo, em formato digital e impresso, além da Livraria Na Nuvem. Nesta edição, você encontra 13 contos de Ivan Bunin, sendo 7 contos inéditos no Brasil, além da biografia do autor e diversos textos complementares.
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[1] Várvara V. Páschenko deixou Bunin no dia 4 de novembro de 1894.
[2] Refere-se ao livro do filósofo suíço Henry Amiel "Do diário de Amiel"





